G-2VXZWP2665

Combustión
Pintura sobre tela
Pigmento de hollín sobre papel de arroz y algodón
3 mt. x 7mt. aprox.
Para realizar estas pinturas, colecté grumos de carbón y hollín en el techo de la cocina de mi abuela, resultantes de la quema de madeira en el fogón de lena durante más de 30 años. 

Para realizar as pinturas colete grumos de carvão no teto da cozinha da casa de minha avó, resultantes da queima de madeira no fogão a lenha durante mais de 30 anos.



   


QUE AS COISAS PERMANEÇAM

O que te direi? Te direi os instantes [...] sou um ser concomitante: reúno
em mim o tempo passado, o presente e
o futuro, o tempo que lateja no
tique-taque dos relógios.

Clarice Lispector, Água Viva.

Em todo lar, se é um lar, há um espaço de recordação. Em todo canto, mesmo que não figurem mais os objetos, a presença destes se mantém. Digo isto, pois, em todo afeto há um quê de construção e manutenção. Quando afirmo que o lar é o lugar da memória, não merefiro a uma casa familiar, nem mesmo a um espaço tradicional com um vaso de flores emcima da mesinha da sala. Pode ser, em muitos casos até, que o lar tenha estes contornos,mas não aqui. Lar é onde o mundo existe como dado à consciência, como possibilidade deexistência no campo da realidade. Para todo navegante, o mar é espaço de habitar.
Para o artista, o mundo é o lar.

Assim como Homero que não se deixava levar pelo canto das sereias, o artista, cujo mundo configura sua própria capacidade de existir, dispõe no tempo os seus objetos que significam e dão voz às suas memórias, seus enfrentamentos, suas lutas e pensamentos. E estes objetos da memória se proliferam na História, vão conferindo razão aos discursos que hoje se constroem, embora a dureza das relações contemporâneas do mercado tente a tudo precificar.

Que as coisas permaneçam me parece constituir um recorte de dois modos pertencer a este mundo assolado pelas desigualdades e ancorado nos modelos socioeconômicos falidos, sem pertencer ou corroborar com a maldade que impera. Aqui proponho, a partir do trabalho dos artistas uma reflexão sobre experimentar o mundo e reificar nele o que possui valor afetivo, que merece adornar o lar. E mesmo que sejam objetos prosaicos, a imperiosa necessidade de estancar a sangria do esquecimento faz com que tijolos, carvão, histórias tentem permanecer. É arqueologia do tempo e da memória.

Ivar e Ivonne, dois artistas que o destino reuniu, têm procurado apresentar suas visões demundo, as trajetórias que compuseram seu caminho até aqui. Ambos nascidos em realidades conflituosas, apresentam nesta exposição a face que gera o conflito no mundo através dos objetos que materializam a luta da própria História contra a destruição: luta de pessoas trabalhadoras que tiveram suas vidas marcadas pela ação do tempo e não puderam eternizar seus próprios feitos. Ressignificados pelas mãos de nossos artistas, talhos de madeira oulenha carbonizada da cozinha da avó, adotam nova forma nas gravuras, objetos e pinturas. Tornam-se registros de um tempo dissolvido no esquecimento coletivo.

Este texto não procura, por fim, dar conta de todos os sentidos presentes nas obras. Mesmo porque elas possuem seus próprios significados, e a despeito do que se realiza hoje numa suposta atividade crítica, não é ético agregar valor comercial às obras com belas palavras. Discursos ficam datados, o tempo é impiedoso com os vaidosos e maus. Portanto, Que as coisas permaneçam é um convite realizado por nós – este curador e os artistas –, para que você se deleite com o tempo e eleja os adornos do seu próprio lar.

Shannon Botelho
2019

*Texto curatorial de la exposición Que as coisas permaneçan, 2019. Galería Desvío, RJ